Filme com 13 indicações ao Oscar 2025 perde favoritismo entre escândalos e brigas internas. Lançamento nos cinemas nacionais é nesta quinta-feira (6) — mas isso ainda importa? Karla Sofía Gascó e Zoe Saldana em cena de ‘Emilia Pérez’
Divulgação
É difícil de lembrar, em todos as 96 edições do Oscar, de um concorrente que tenha passado por altos tão altos e baixos tão baixos quanto o musical francês “Emilia Pérez”. A grande estreia no Brasil nesta quinta-feira (6) é, sim, o filme com o maior número de indicações, 13 no total, mas também é o mais criticado.
E os problemas com a produção a essa altura vão muito além da rivalidade com brasileiros, que o veem como principal competição na categoria de melhor filme internacional – mas passam de acusações de apropriação cultural a declarações racistas e xenofóbicas de sua grande estrela, a primeira atriz trans a receber uma indicação ao Oscar, Karla Sofía Gascón.
De fato, a grande novela da campanha do filme há muito superou o dramalhão do próprio enredo, mas ganhou tons ainda mais acentuados dias antes da estreia no país. Nesta quarta (5), o diretor Jacques Audiard jogou a própria estrela aos leões e declarou que ela estava “prejudicando a equipe”.
É até difícil acreditar que, há menos de duas semanas, o filme celebrava o maior número de indicações para um filme em língua estrangeira na história do Oscar, meses após ganhar dois prêmios importantes no Festival de Cannes.
Com tanto drama, é até inevitável perguntar se alguém ainda quer de fato assistir ao musical com a mente aberta – ou se, pelo menos, não quer apenas confirmar o desgosto pela produção.
Assista ao trailer do filme “Emilia Perez”
A descoberta (e celebração) em Cannes
“Emilia Pérez” surgiu para o mundo após seu lançamento no Festival de Cannes, em maio de 2024. Os elogios após a primeira exibição contemplavam tanto as atuações – em especial a de Gascón, como uma traficante mexicana trans que passa por uma cirurgia de redesignação de gênero – quanto a direção de Audiard.
Pouco depois, o musical ganhou o prêmio do júri, o segundo mais importante do renomado evento, e o de atuação feminina, que ficou com a espanhola, Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz.
Gascón, aliás, se tornou a primeira trans a vencer por interpretação feminina no festival.
Tanto sucesso chamou a atenção da Netflix, gigante do streaming que sonha em ganhar seu primeiro Oscar de melhor filme, que comprou os direitos de distribuição nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Apogeu no Globo de Ouro
Zoë Saldaña posa com o prêmio de melhor atriz coadjuvante em filme, por ‘Emilia Pérez’, no Globo de Ouro 2025
AP Photo/Chris Pizzello
Ainda não se sabia, mas se tornar o maior vencedor do Globo de Ouro 2025 seria o apogeu para “Emilia Pérez”.
Com quatro troféus, entre eles o de melhor comédia ou musical e de melhor filme em língua não inglesa, o francês se gabaritava como um dos grandes prováveis nomes para o Oscar, cujos indicados seriam anunciados poucas semanas depois.
Mal sabiam que tanta vitória atrairia ainda mais os olhares do mundo – e de pessoas que discordavam de sua abordagem.
Alerta no paraíso
O Globo de Ouro foi o estopim para que as críticas ao filme, mais concentradas no público mexicano, ganhassem o resto do planeta. Em especial, é verdade, graças aos sempre extremamente online brasileiros.
Pouco depois da premiação, as redes sociais foram tomadas por reclamações contra o filme. Algumas justas, outras nem tanto.
As maiores delas reclamavam de como a transição de gênero era tratada e de uma falta de cuidado em geral com o México – da falta de atores do país no elenco, com traduções incorretas e estereótipos.
O Oscar (ou Karla vs. Fernanda)
Karla Sofía Gascón comenta ataques nas redes e pede ajuda a Fernanda Torres
A animosidade contra o filme era tamanha que muita gente se surpreendeu quando foi anunciado que Gascón e que Audiard viriam ao Brasil para promovê-lo.
Na passagem pelo país, a atriz em um primeiro momento aproveitou uma entrevista ao g1 para pedir ajuda a Fernanda Torres contra os comentários cheios de ódio que recebia nas redes sociais – e recebeu o apoio da brasileira.
O anúncio dos indicados da Academia americana consagrou então o filme como o mais indicado do ano – mas a alegria durou pouco.
Pouco depois, outros veículos brasileiros publicaram textos nos quais a espanhola acusava “pessoas que trabalham no ambiente” de Torres de falar mal de sua atuação e de “Emilia Pérez”.
A repercussão foi tão grande que chegou a Hollywood e muita gente discutia se isso não podia fazer com que ela perdesse sua indicação ao Oscar. Ela se retratou, mas perdeu a simpatia que havia conquistado.
Era apenas o começo.
Espiral racista e xenofóbica
Quando parecia que Gascón talvez conseguisse se livrar do problema que ela mesma havia causado ao dar uma explicação meio sem sentido para as acusações sem prova que fizera contra a concorrente, um novo escândalo.
Uma jornalista do Canadá, Sarah Hagi, encontrou e divulgou tuítes nem tão antigos da atriz, no qual fazia comentários racistas e xenofóbicos contra muçulmanos e até contra George Floyd – nem a diversidade do Oscar 2021 foi poupada por ela.
Muitos especialistas do entretenimento americano passaram a dizer que as chances da espanhola, que já não eram grandes, tinham evaporado de vez.
Mais do que isso, alguns já nem o viam mais como o favorito na categoria de filme internacional – algo bom para “Ainda estou aqui”, único outro concorrente que também havia sido indicado a melhor filme.
Mas tudo que é ruim pode piorar.
Afastada e ‘vítima’
Jacques Audiard em um evento de imprensa na Cidade do México
Eduardo Verdugo/AP
De alguma forma, Gascón piorou a situação em suas diversas tentativas de pedir desculpa. Além de não coordenar os esforços com a Netflix, que a essa altura já tinha investido milhões de dólares na campanha, a atriz nunca assumiu totalmente a culpa.
Os pedidos foram um passo-a-passo do básico do que não fazer ao se desculpar por um vacilo público. Parafraseando, teve de “desculpa a quem se sentiu ofendido” a “tenho até amigos que são” e “estão querendo me derrubar”. Enfim, um horror.
Até entrevista meio descontrolada para a CNN a moça deu. Nada ajudou. Tanto que revistas americanas noticiaram que a Netflix largara de vez a mão da atriz e não pagaria mais passagens e hospedagens para que ela participasse de eventos de divulgação.
As suspeitas de um afastamento foram confirmadas nesta quarta, quando o diretor do filme fez duras críticas a sua protagonista em entrevista ao site Deadline.
Teve:
“Não falei com ela e nem quero falar”;
“Não entendo sobre isso também é por que ela está prejudicando pessoas que eram muito próximas a ela”;
“Ela está realmente se fazendo de vítima”;
e “de repente você lê algo que essa pessoa disse, coisas que são absolutamente odiosas e dignas de serem odiadas”.
Nas redes sociais, declarações tão fortes não foram muito bem recebidas. Até entre brasileiros, havia quem acusasse o cineasta (um homem branco, cisgênero e francês) de usar uma mulher trans como bode expiatório.
Em especial, muita gente acusa Audiard de ter um teto de vidro. Mais do que as críticas às suas escolhas no filme, dias antes ele havia dito que “o espanhol é a língua de países modestos, de países em desenvolvimento, dos pobres e dos imigrantes”.
Fadiga
A novela se estendeu tanto, com capítulos tão imprevisíveis, que é possível debater se não há uma certa fadiga no público. Resta saber se isso seria bom ou ruim para as exibições do filme no país.
Afinal, talvez ainda exista um bom número de pessoas que quer apenas confirmar seu já existente ódio pela história e compartilhar o sentimento em uma sessão cheia, em uma catarse coletiva.
Uma pena. Apesar dos pesares, “Emilia Pérez” é um bom filme. Não é ótimo, não a ponto desse delírio coletivo da Academia americana, mas merecia mais de seus autores.
-6 de fevereiro de 2025