Após três discos de intérprete, artista se apresenta como compositora e dá voz ao próprio cancioneiro no álbum ‘Nada de se matar ou morrer de amor’ Capa do álbum ‘Nada de se matar ou morrer de amor’, de Daíra
Karina Burigo / Divulgação
♫ OPINIÃO SOBRE DISCO
Título: Nada de se matar ou morrer de amor
Artista: Daíra
Cotação: ★ ★ ★
♪ Quarto álbum de Daíra, o primeiro desde Samsara (2021), Nada de se matar ou morrer de amor chega ao mundo digital em 30 de janeiro como ponto de mutação na discografia da artista fluminense, nascida Daíra Sabóia em Niterói (RJ), em julho de 1989.
A metamorfose reside no repertório. Neste disco gravado com produção musical de Zeca Baleiro, com quem a cantora já tinha se conectado há dois anos no single De longe toda serra é azul (2023), Daíra se apresenta como compositora em 11 faixas autorais.
É uma guinada radical da artista após três álbuns em que se mostrou somente como intérprete de músicas alheias, incluindo songbook com o cancioneiro angustiado de Belchior (1946 – 2017), Amar e mudar as coisas (2017), lançado quatro meses após a morte do compositor.
A safra autoral de Daíra não chega a impressionar, mas tampouco desagrada ou dilui o interesse pelo álbum editado pelo selo fonográfico de Baleiro, Saravá Discos.
Um dos trunfos é a canção que abre o álbum Nada de se matar ou morrer de amor. Manhã de inverno (Carluiz Saboia e Daíra) tem a temperatura amena de uma delicada canção folk e, nesse universo de líricas, a artista se afina com Baleiro, inclusive por também tocar violão, instrumento condutor do gênero.
Se a cantora e agora compositora exercita o desapego afetivo na música-título Nada de se matar ou morrer de amor, com paradoxal melancolia acentuada pelo sopro quase etéreo do trombone de Allan Abbadia, Garfo e sopa soa mais quente por ter o tempero da intensidade no arranjo de piano, baixo e pandeiro.
Garfo e sopa é uma das quatro parcerias de Daíra com o produtor Zeca Baleiro incluídas no repertório. Outra é Pra sentar num bar (2024), canção gravada com o refinado toque rural do acordeom de Adriano Magoo e já apresentada como single em agosto do ano passado.
Com arranjo e violões de Alexandre Fontanetti, Corazón de piedra é canção em espanhol que reforça o tom folk do disco em gravação que harmoniza o canto de Daíra com as vozes dos parceiros Lola Parda e Lucas Fidelis. Nesta música, também assinada por Augusto Feres, Daíra soa como cantante latinoamericana.
Já Guitar hero (Too much too little) – parceria de Daíra com Zeca Baleiro e Lucas Fidelis – tem letra em inglês e arranjo metalinguístico com sonoridade minimalista calcada no toque da guitarra de Rovilson Pascoal, ás do instrumento. Também em inglês é Little gypsi, canção composta por Daíra com João Mantuano e gravada com Zé Ibarra em arranjo que evidencia os violões tocados por Guto Marcondes.
Faixa já lançada em novembro como segundo single do álbum, Como Frida Khalo não me calo (Daíra e Diana Manacá, 2024) eleva a voz da artista em letra que soa como libelo pela liberdade de fala feminina. Na letra, Daíra cita nomes como Elis Regina (1945 – 1982), Elza Soares (1930 – 2022), Linn da Quebrada, Madonna, Maria Bethânia e Rita Lee (1947 – 2023). Outras ilustres mulheres, como Fernanda Montenegro e Gal Costa (1945 – 2022), são mencionadas na parte recitada da gravação em que Daíra parece tentar evocar Rita em Todas as mulheres do mundo (1993).
Na mesma linha feminista, Deus é mulher – música batizada com o nome do álbum lançado por Elza Soares em 2018 – imprime no disco a energia do rap em gravação que reúne as vozes de Daíra e Andréa Bak, atriz e rapper, parceira da artista no tema.
Em Parece paz, a artista espoca flash esperançoso do conturbado mundo da era digital na letra mais inusitada do disco (“Tá tudo muito doido / Muito diferente / Se todo mundo escutasse / Como é ser gente / Eu não daria um tempo / Pra minha cabeça / As notícias do mundo / Enchem a minha mesa / Mas se olhar de novo / Ali tem algo um pouco / Que parece com a paz”).
Mais uma parceria de Daíra com Zeca Baleiro, Quem vem de lá arremata o álbum Nada de se matar ou morrer de amor em gravação que, após introdução de tom vocal sacro, revolve raízes da ancestralidade e da árvore genealógica de Daíra ao cair na cadência afro-brasileira do samba.
Em essência, o disco é bom, mas deixa sensação de que Daíra ainda precisa ajustar o foco do cancioneiro autoral para delinear a própria identidade como compositora.
-23 de janeiro de 2025